No âmago das transformações econômicas e sociais que marcam o alvorecer do século XXI, emerge, com inquietante vigor, o fenômeno da pejotização – prática que, embora revestida da sedutora retórica da eficiência e da liberdade contratual, encerra um dos mais insidiosos processos de precarização do trabalho em tempos recentes.
O termo, oriundo do jargão forense e empresarial, designa a conversão artificial da figura do empregado em pessoa jurídica, compelida a celebrar contratos civis ou comerciais, quando, na essência, persiste a clássica relação de subordinação, pessoalidade, onerosidade e habitualidade – elementos definidores do vínculo empregatício.
Este expediente, longe de constituir mera inovação pragmática, insere-se num contexto mais amplo de fragilização dos direitos sociais, protagonizada por uma lógica de mercado que insiste em submeter o trabalho humano à lógica fria da mercadoria, olvidando-se, assim, do caráter existencial do labor, já reconhecido pela melhor doutrina jusfilosófica. Neste ponto, torna-se inescusável recordar o alerta de Karl Marx, para quem “o capital é trabalho morto, que, tal como um vampiro, só vive de sugar trabalho vivo” (O Capital, 1867). A pejotização, nesse diapasão, revela-se como uma nova face desse vampirismo contemporâneo, dissimulado sob a égide da modernidade e da flexibilidade.
Sob a ótica jurídico-constitucional, tal prática afronta diretamente o núcleo principiológico do Direito do Trabalho, notadamente o princípio da primazia da realidade, consagrado na jurisprudência consolidada do Tribunal Superior do Trabalho (TST), segundo o qual a verdade real prevalece sobre as formas contratuais aparentes. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, por sua vez, não deixa margem à dubiedade, ao insculpir, no artigo 7º, um elenco de direitos sociais irrenunciáveis, pilares da ordem econômica fundada na dignidade da pessoa humana e na valorização do trabalho, como se lê no artigo 1º, incisos III e IV.
É neste contexto que se insere o paradigmático julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 5.625, atualmente em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal, e que promete definir, com gravidade institucional, os contornos jurídicos da pejotização. O Pretório Excelso é chamado a ponderar, com acuidade hermenêutica, a tensão entre os princípios da livre iniciativa e da função social do trabalho, entre os anseios do capital e a necessidade de proteção do trabalhador, enquanto sujeito de direitos fundamentais. O relator, Ministro Luís Roberto Barroso, já sinalizou uma tendência à convalidação da terceirização ampla, o que, segundo críticos, abriria as portas para a pejotização massiva, sob o manto da licitude.
Importa, todavia, reconhecer que o desafio que se impõe à Corte transcende o mero controle de constitucionalidade formal: trata-se de uma verdadeira interrogação sobre os destinos éticos e políticos do pacto social brasileiro. Como assevera Habermas, “o Direito só é legítimo enquanto expressão racional da vontade comum” (Faktizität und Geltung, 1992). A pejotização, ao corroer os fundamentos da solidariedade social, impõe-se como um atentado contra essa racionalidade comunicativa que sustenta o Estado Democrático de Direito.
Em última análise, a decisão do STF sobre a matéria jamais irá ignorar que, para além das cifras e dos contratos, está em jogo a própria tessitura moral da sociedade brasileira. A história do Direito do Trabalho é, antes de tudo, a história da resistência humana contra as forças anônimas da exploração. Certamente, o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição e intérprete último dos valores republicanos, fará ecoar, em seu veredito, não apenas a letra fria da norma, mas a chama viva da justiça.