A reflexão que segue nasce de uma conversa sobre os desafios da escola.
Um interlocutor, exaurido pelo trabalho e demandas contínuas, tomado por um tom de manifesto, lança a frase que corta como sintoma e denúncia: “Está tudo errado. Era preciso recomeçar tudo de novo!”. Não se trata de mero desabafo, mas da irrupção de um inconsciente ‘saturado’, um enunciado que, ao mesmo tempo em que mostra o colapso do laço educativo, repete a cena de impotência em que o sujeito clama por um Outro capaz de dar sentido, ainda que seja para anulá-lo.
Mas, afinal, o que seria recomeçar? Um retorno disfarçado ao mesmo ponto de falha? No senso comum, a ideia soa como gesto de coragem. No campo da educação, porém, impõe pergunta incessante: recomeçar o quê? Uma reinvenção ética e pedagógica, que demande novas posturas e pactos de escuta ou apenas a “reciclagem”de velhos impasses sob roupagens mais modernas, vendidas como inovação?
Constata-se que a crise posta não é (somente) de gestão, de métodos ou resultados, entretanto de escuta, desejo e implicação subjetiva. A escola, em linhas gerais, organiza-se numa hierarquia simbólica: alguns centralizam, outros se omitem; há quem atue isoladamente ou justifique atos em precariedades; uns são acusados de desinteresse; outros, ainda, despejam soluções prontas.
O saber, nesse quadro, não circula, ele é concentrado, instrumentalizado ou descartado. Lacan (1998) lembra à escola que “há uma falha no Nome-do-Pai, significante que institui a lei simbólica e possibilita a articulação entre sujeitos”. Assim, nela prevalecem corpos que executam, reclamam e se defendem, sem pactuar.
Já Freire (1987, p.39), em sua Pedagogia do Oprimido, insiste: “ninguém educa ninguém, tampouco ninguém se educa sozinho: educamo-nos em comunhão, mediatizados pelo mundo”. Os termos comunhão/mediação ressaltam à abertura ao outro, ao conflito produtivo e à dúvida, recusando clichês que culpabilizam terceiros (dentre eles, o sistema). Ousa-se dizer, então, que o desafio freire-lacaniano formulado para a problemática é sustentar a escuta como ato possível de rupturas, e não como fórmula de gestão.
Pelo precedente, o dito não reside em afirmar ou negar que “tudo esteja errado” na escola, contudo, deslocar o manifesto inicial para perceber o óbvio: o tempo é outro, os territórios se transformaram e as infâncias e adolescências já não são as mesmas de outrora. É preciso abrir-se à historicidade do presente, sem saudosíssimo, em que cada geração reinscreve a cena pedagógica sem precisar apagar o que a antecede.
Nesse sentido, recomeçar não significa um ponto zero, e sim uma decisão éticade implicação maior no ato pedagógico, de suportar a falta como constituinte e a pergunta em movimento, sem precipitar resposta ou verdade (defende-se que “verdade” só se sustente no plural), conforme Lacan (1985, p. 249) – “a verdade tem estrutura de ficção”. “Desta forma, os homens não chegam a transcender as “situações-limites” e a descobrir ou divisar […] “os inéditos viáveis””, diz Freire (1987, p. 53, com destaques). E educar é justamente abrir espaço para que os sujeitos construam suas narrativas, não a da prova ou do manual didático, mas aquelas histórico-partilhadas que os constituemcomo fendidos, e desejantes.
Freire acrescentaria: essas narrativas se forjam no exercício da autonomia, no diálogo e, sobretudo, no reconhecimento da existência e do saber do outro. Assim, (talvez) o gesto inaugural de um recomeço seja validar a escola como lugar de furo, de impasse e de não saber (pleno), e justamente aí encontrar sua potência. Escutar (se)sustentando o vazio sem preenchê-lo com a exatidão dos conteúdos, abrir (se) ao inesperado: eis possíveis caminhos.
Na vida e na escola, com Freire compreendemos a educação como ato político-engajado; com Lacan, sabemos que é também ato de linguagem. Toda linguagem comporta falha e desejo. Recomeçar, portanto, deve ser a coragem de escutar o que não se queria ouvir e, nesse gesto não soberano, a chance de que algo realmente novo aconteça.
Referências
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/espanhol/pdf/pedagogia_do_oprimido.pdf. Acesso em: 30 de agosto de 2025.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
LACAN, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-1958)
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.